CARTA FINAL DO I ENCONTRO DAS MULHERES INDÍGENAS DO CERRADO
Carta das Mulheres Indígenas do Cerrado — Por
território, água e vida
Nós, mulheres indígenas do Cerrado - Apinajé,
Apãnjekrá Kanela, Baikairi, Bororo, Gavião Pycopcatiji, Guajajara, Guarani
Kaiowá, Javaé, Karajá, Kariri, Kaxixo, Kinikinau, Krahô, Krenje, Krepymcateje,
Krikati, Memortumré Kanela, Paresi, Tabajara, Terena, Tuxá, Wapichana,
Xakriabá, Xavante, Xerente e Xukuru - nos reunimos em Brasília (DF), no I
Encontro das Mulheres Indígenas do Cerrado, junto com o XI Encontro e Feira dos
Povos do Cerrado, para somar vozes e anunciar caminhos em defesa dos nossos
direitos e da proteção do Cerrado. Articuladas no âmbito da Mobilização dos
Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC), reafirmamos nosso protagonismo e a unidade
entre povos, gerações e territórios.
O Cerrado abriga pelo menos 179 Terras Indígenas no
bioma e em suas bordas (áreas de transição), de 62 povos em 10 estados. São
cerca de 20,7 milhões de hectares e mais de 200 mil pessoas. Muitos desses
territórios estão em diferentes etapas de regularização, com processos que
precisam ser finalizados e garantidos para nossos povos. E nessa conta não
estão as inúmeras reivindicações por Terras Indígenas ainda não reconhecidas
pelo Estado brasileiro no Cerrado.
Somos guardiãs de uma biodiversidade única. O Cerrado
junta veredas, campos e matas que abrigam milhares de espécies e alimentos que
sustentam nossas famílias e economias. Também é o coração das águas: nascentes
e brejos que alimentam as grandes bacias do São Francisco, Tocantins-Araguaia,
Paraná-Paraguai e Parnaíba e recarregam os lençóis de água. Com as mudanças
climáticas, as secas ficam mais longas, o calor mais forte, a chuva mais
irregular e as queimadas mais intensas. Quando há desmatamento e veneno, as
nascentes adoecem, as veredas baixam e a sede aumenta. Cuidar da biodiversidade
e das águas do Cerrado ajuda a enfrentar a crise do clima: nossos territórios,
com raízes profundas e nosso jeito tradicional de cuidar do fogo, refrescam o
ambiente, mantêm a umidade e ajudam a estabilizar as chuvas. Defender o Cerrado
é defender o clima e a vida de todo o Brasil.
As mulheres estão na linha de frente do cuidado com o
Cerrado. Somos guardiãs de sementes e nascentes, cuidamos de roças e quintais,
mantemos viveiros, fazemos manejo do fogo com sabedoria, acompanhamos a
qualidade da água, ensinamos nas escolas e transmitimos conhecimentos. Quando
uma mulher é atacada, todo o território sofre: a violência nos afasta dos
espaços de decisão, rompe redes de cuidado, desorganiza economias e silencia
saberes. Nesse contexto, nossa solidariedade ao povo Javaé pelo recente feminicídio
de uma jovem indígena. Não à violência! Proteger as mulheres é proteger o
Cerrado.
Durante o Encontro organizamos nossa discussão em seis
eixos temáticos - Saúde, Educação, Cultura, Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres, Território e Economias Indígenas e Sustentabilidade - e, com base nos trabalhos de grupo,
sistematizamos desafios e fortalezas comuns. Como desafios identificamos: a
necessidade de demarcação e a proteção territorial; a educação desvalorizada e
o risco às línguas indígenas; a saúde marcada pela falta de assistência e por
impactos diversos; a violência contra as mulheres; a presença de álcool e
drogas nos territórios e seus efeitos sociais; o uso de agrotóxicos e o avanço
da mineração e do agronegócio; a criminalização de lideranças indígenas; os
efeitos das mudanças climáticas sobre costumes e alimentação; e o suicídio
entre jovens. Ao mesmo tempo, sustentam nossa resistência: a cultura e os
saberes tradicionais; a organização de mulheres e o protagonismo feminino; a
produção de alimentos, a agroecologia, a agricultura familiar e as ações de
restauração; a organização comunitária, as associações e uma base social forte;
a defesa ambiental e a proteção do Cerrado; a educação e a saúde diferenciadas;
e a espiritualidade e a força da natureza que nos orientam.
Diante desse quadro, reivindicamos:
1 - Demarcação já e proteção efetiva de todas as
Terras Indígenas do Cerrado, com ações imediatas contra invasões, desmatamento,
grilagem, garimpo e violência.
2 – O fortalecimento da política de saúde indígena, com recorte de gênero, garantindo parteiras,
benzedeiras, pajés e medicinas indígenas; equipes permanentes com formação
intercultural; atenção à saúde mental e às violências.
3 – O fortalecimento da educação escolar indígena
diferenciada, com autonomia pedagógica, valorização e estabilidade de
professoras e professores indígenas, garantia das línguas e de currículos
próprios.
4 - Enfrentamento à violência contra as mulheres
indígenas, com protocolos comunitários, acesso à justiça e políticas de
prevenção construídas com nossas lideranças.
5 - Economias indígenas e sustentabilidade:
fortalecimento de roças, quintais, sementes crioulas, artesanatos, outras iniciativas
produtivas e de restauração lideradas por mulheres.
7 -
Reconhecimento e implementação de PGTAs, protocolos de consulta e brigadas
indígenas com recursos e participação plena das mulheres.
8 - Políticas específicas para aldeias urbanas,
garantindo território, água, educação, saúde e proteção social diante da
expansão das cidades sobre nossas comunidades.
9 - Cerrado Vivo já: desmatamento zero no bioma; proteção e restauração
de veredas, nascentes e matas de galeria; reconhecimento e financiamento do
manejo tradicional do fogo; e regras firmes para captação de água e uso de
agrotóxicos nas bacias que nascem no Cerrado, com participação deliberativa das
mulheres indígenas.
10 - Adaptação climática no Cerrado com protagonismo
indígena: elaboração de planos de adaptação comunitários por território/região;
sistemas de alerta e brigadas permanentes; proteção de nascentes e recuperação
de veredas; fortalecimento de roças e viveiros com espécies nativas resistentes
à seca e bancos de sementes; e acesso direto a financiamento climático para
iniciativas lideradas por mulheres indígenas.
Nós, mulheres indígenas do Cerrado, afirmamos: cuidar
do Cerrado é cuidar do Brasil. Onde uma mulher indígena está, a água resiste, a
mata respira e o futuro se levanta. Exigimos que o Estado cumpra seu dever
constitucional; que os órgãos competentes atuem com urgência e respeito aos
nossos modos de vida; que a sociedade reconheça o Cerrado como coração das
águas e casa de muitos povos. Seguiremos juntas e em movimento, com nossos
cantos, nossas línguas e nossas sementes, por território, água e vida - agora e
para as futuras gerações.
Esta carta integra a plataforma política das mulheres
indígenas do Cerrado no âmbito da MOPIC - Mobilização dos Povos Indígenas do
Cerrado.
Brasília – DF, 12 de setembro de 2025
Associação União das Aldeias Apinajé_PEMPXÀ